14 de março de 2008

Comentários sobre Ciência e Ensino Superior

Publicado no "Correio da Manhã" de 30-1-2001:

Com certa frequência, aparecem na comunicação social opiniões sobre os problemas da investigação científica no ensino superior. Nem sempre essas opiniões são consensuais - nalguns casos, até, podem ser consideradas aberrantes - mas em muitos se chama a atenção para males crónicos, que há muito o País devia ter remediado.

Um desses exemplos é o artigo “O mérito e a ciência em Portugal”, assinado por Armando Machado (“Público” de 27/12/2000), que contém uma série de verdades, é omisso nalgumas das causas dos males que aponta e pede algo que não parece muito justificado.

Está certo quando refere a baixa produtividade científica de muitos professores universitários e, posso acrescentar, de muitos cientistas dos laboratórios de investigação fora das universidades. Refere a existência de Professores Catedráticos com escasso curriculum, quando uma das condições para ascender a esse topo da carreira deveria ser já ter produzido uma soma substancial de ciência. O mesmo acontece – acrescento – no caso dos Investigadores Coordenadores, o seu equivalente na carreira de investigação fora das Universidades.

Sem o explicitar claramente, fala da inversão de valores que frequentemente se verifica, com os menos qualificados a serem promovidos à frente dos mais qualificados, o que é um dos mais desgraçados males deste País. Tive ocasião, recentemente, de assinalar esse mal, citando um documento comprovativo de que, num grande instituto de investigação, não havia correlação entre produção científica e progressão na carreira! O caso é generalizável a grande parte das instituições onde se faz investigação, nas universidades e nos institutos.

Não refere que uma das causas da baixa produção científica é a carência de verbas com que se debatem muitos cientistas, especialmente aqueles que não pertencem ao grupo de “science for the boys”, algo que tem existido sempre e se exacerbou em tempos mais recentes. Tenho suficiente experiência do caso.

Quando um cientista se debate com dificuldades para compra de reagentes, aquisição ou reparação de equipamento, bibliotecas paupérrimas, etc. etc. etc. é lógico que a sua produção científica sofra.

Exemplos: Em tempos, tive um microscópio electrónico de transmissão parado mais de seis meses por ser necessário substituir o cabo da alta tensão, que custava 800 contos. Depois de receber muitas negativas e só quando apregoei como era incapaz a gestão a alto nível, que mantinha parada uma máquina de muitos milhares de contos e que já tinha produzido muito trabalho científico, por negar os 800 contos e “dava” muitos milhares de contos a sectores menos qualificados, é que um dos altos dirigentes veio ter comigo e disse que dava o dinheiro. Noutra ocasião, referi – aliás sem segunda intenção – numa reunião presidida por um Secretário de Estado, que tinha há dois meses, um microscópio electrónico de varrimento – também com muitos escritos científicos a seu crédito – parado porque me negavam os 100 contos necessários para reparar a resistência de aquecimento da bomba de difusão de óleo. O membro do governo, sentindo a sua responsabilidade, declarou, no seu discurso, que daria os 100 contos da verba do gabinete.

Para além dos muitos exemplos deste género, basta ver o estado em que estão as bibliotecas de muitas das nossas mais importantes instituições, alegadamente por “falta de verba” – que aparece, milagrosamente, para criar mais laboratórios – para se ver a incapacidade de gestão, ao mais alto nível, de que sofre a investigação científica em Portugal. E porque é que um “paper” científico custa muito mais tempo e esforço em Portugal do que nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na Suécia. Tenho suficiente experiência desse facto, pois, além de Portugal, também trabalhei naqueles três países.

Na parte burocrática, um ponto fácil de corrigir e que evitaria muitas perdas de tempo e de esforço - e, até, de honestos atropelos da lei, sem os quais os prejuízos ainda seriam maiores - é a totalmente inútil "compartimentação" das verbas dum projecto num sem número de rubricas, de forma que sucede constantemente que um investigador precisa de comprar ácido sulfúrico, mas não tem verba nessa rubrica, embora tenha dinheiro para placas de Petri que, de momento, não necessita.

Publiquei em 1990 um artigo (que foi premiado com Menção Honrosa pela então Secretaria de Estado da Modernização Administrativa!) em que analisava esses males e propunha que, para a investigação científica, os projectos indicassem a estimativa das verbas nas diferentes rubricas mas, depois, o dinheiro fosse gasto sem essas restrições, num bolo único. (A classificação das despesas, por rubricas, a posteriori, pelos serviços administrativos, não teria qualquer dificuldade). Mandei esse artigo a três ministros das Finanças, mas nem sequer tive qualquer resposta. E o mal continua…

*

Como já tenho referido frequentemente, considero que a “prioridade das prioridades” da ciência em Portugal é prover dos necessários meios de trabalho todos aqueles que, pelo que já produziram, dão aceitáveis garantias de serem capazes de produzir mais. Isso teria, ainda, a vantagem de mostrar a diferença entre os que não produzem mais por falta de meios e aqueles a quem falta a capacidade para esse trabalho. Lembro-me de ter proposto isso numa importante reunião da NATO, para tratar de assuntos da ciência, que se realizou em Lisboa, em 1962. Quase quarenta anos depois, estamos na mesma, ou pior. Quando, em Portugal, houver boa gestão de ciência – a todos os níveis – até o pouco dinheiro que o País devota a este sector produzirá muito mais.

O autor do artigo que estou a comentar mostra grande indignação pela “falta de incentivos” para os professores universitários investigarem.

Convém lembrar que a produção de investigação científica é uma obrigação de todos os professores universitários, nos seus três níveis (Auxiliar, Associado e Catedrático) e não algo que só se faz quando há, como “incentivo”, a perspectiva de promoção. Portanto, um Professor Auxiliar e um Professor Associado têm por obrigação, inerente a esses postos, a produção de ciência. Se a falta de "perspectiva de promoção", fosse razão legítima para não produzir ciência, isso justificaria – como, infelizmente, tenho visto suceder em muitos casos – que, atingido o topo da carreira, já não seja “preciso” investigar, porque "não há incentivo"!

(Nunca me esqueço dum "cartoon" publicado há anos no "MAD", em que o patrão se dirigia aos empregados dizendo "Quero lembrar-lhes que há um grande incentivo para que trabalhem: o vosso ordenado!").

Naturalmente, isto não significa que eu não considere importantes os vencimentos, que o mérito seja premiado, etc. etc. etc. Já em tempos propus à defunta JNICT algo que constituiria prémio de produtividade. Não foi aceite a minha proposta, talvez, até, porque o sistema que sugeri não permitia olhar para a “cara” de quem recebia esses prémios e lá se ia o poder discricionário que, já nessa altura, adoptava o sistema de “science for the boys”.

O autor do artigo quer que não haja limite para o número de professores catedráticos, nem tempo mínimo em cada categoria anterior (Auxiliar e Associado), para que se atinja rapidamente o topo da carreira. Salvo seja mal comparado, seria o caso dum exército em que não haveria limite ao número de generais, nem tempos mínimos de serviço em cada posto, de forma a que todos os oficiais pudessem rapidamente atingir o generalato. Mas se a falta de perspectiva de promoção for - como indica - uma razão para não investigar, então ainda mais cedo muitos deixariam de fazer esse trabalho, por já não terem "incentivo".

Armando Machado assina-se como “Professor da Universidade do Minho e da Universidade de Indiana (EUA)". Não diz a que nível, nos Estados Unidos (Assistant Professor, Associate Professor ou Full Professor, este, aliás, o único que, nos Estados Unidos, é tratado por “Professor”). A menos que, na Universidade de Indiana, já tenha atingido um elevado grau de senioridade e lhe tenha sido atribuída “tenure” (em português, o equivalente à “entrada para o quadro”), estará numa situação muito mais precária do que a de qualquer professor universitário português, pois se manterá, como a maioria dos professores universitários nos Estados Unidos, em contratos a termo certo, o trabalho precário contra o qual tanto se luta em Portugal.

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*Miguel Mota, Investigador Coordenador e Professor Catedrático (da Universidade de Évora e da Ohio University, EUA), jubilado

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Professor Mota,
como autor do artigo que comenta, gostaria de lhe dizer que no essencial estou de acordo consigo. E como pergunta, aqui vai a resposta: No ano que escrevi o artigo era Professor Associado (com tenure) da Universidade de Indiana. Aproveito para lhe dizer que sempre senti que o vínculo era mais precário em Portugal do que nos EUA e hoje, sendo professor catedrático com nomeação definitiva na Universidade do Minho, continuo a pensar o mesmo.

Concordo consigo que a obrigação de um professor universitário é investigar e ensinar, tal como a obrigação de um estudante é estudar. Mas o que fazer quando tal não acontece? O que fazer quando um investigador de grande qualidade não pode progredir por falta de vagas no seu departamento, ou porque as promoções se fazem por antiguidade?

Permita-me clarificar a minha posição sobre os incentivos e as promoções. Como sabe, nos EUA podemos em princípio ser todos catedráticos, o que não significa que todos o sejamos. Nas universidades apostadas na investigação, a promoção é feita com base na produtividade e no mérito científico, competindo-se geralmente contra padrões absolutos e quase nunca contra outros colegas. A diferença pode ser vista assim: enquanto que em Portugal a competição é quase sempre intra departamento, nos EUA ela é quase sempre entre departamentos. Utilizando uma metáfora biológica, diria que a competição no nosso país é intra-específica e pouco saudável (colegas da mesma casa competem uns contra os outros em jogos de soma zero com consequências nefastas -- veja a litigância que os concursos têm gerado nos tribunais Portugueses, por exemplo). Nos EUA a competição é entre espécies e por isso mais saudável. Sempre quisemos em Indiana ter um departamento de psicologia melhor do que o departamento de psicologia de Purdue, por exemplo, e isso exigia a nossa união interna. Penso que essa união seria prejudicada se a "vitória" de um fosse a "derrota" do seu vizinho.

Obrigado pelo seu comentário. Como disse, concordo no essencial com a sua análise.

Cordialmente,
Armando MAchado