15 de março de 2008

Carta aberta ao Dr. Emídio Rangel

Publicado no "Linhas de Elvas" de 21 de Maio de 1999:

Ex.mo Sr. Dr. Emídio Rangel,

Não posso deixar passar sem comentário o seu artigo “A política às avessas”, no “Diário de Notícias" de 24-4-99.

A propósito da “forma como os partidos políticos escolhem os seus representantes na Assembleia da República e no Parlamento Europeu”, declara: “Não ponho, obviamente, em causa esse direito de escolha”.

Pois eu sou exactamente da opinião contrária e não só “ponho em causa” como contesto vigorosamente “esse direito de escolha”.

Sendo a “democracia” o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, é óbvio que é ao povo - aos cidadãos - que pertence o direito de decidir em tudo o que lhes diz respeito, nomeadamente na governação do seu país. Porque não é possível que todos exprimam o que desejam em todas as matérias a decidir - seria necessário fazer um referendo para todas as decisões, por mais insignificantes que fossem - as pessoas, em democracia, delegam, por períodos de tempo determinados, nalguns dos seus concidadãos, esse poder decisório.

Para, no entanto, essa delegação - que é feita através do voto - ter validade, é necessário que seja feita com total liberdade de escolha da pessoa em quem vamos delegar o nosso poder.

Para evitar o que seria uma enorme dispersão dos votos e tornar o sistema viável, apresentam-se “candidaturas” para os lugares que vão ser votados. Também aqui, por razões óbvias, terá de haver completa liberdade de candidatura e não a apresentação dessas candidaturas ser “direito exclusivo” de qualquer pessoa ou grupo. Esse facto verifica-se, naturalmente, em ditaduras. E, quando esse “direito dos cidadãos” (de delegarem o seu voto em quem muito bem entendem) lhes é retirado e entregue a partidos políticos (geralmente compostos por uma pequena minoria de cidadãos...) estamos perante uma ditadura partidocrática, também designada por partidocracia, já que são os partidos que detêm o poder.

No “Forum” da TSF Rádio em 19 de Abril de 1999, dois dias antes daquele em que o Sr. Dr. Rangel foi um dos moderadores e em que também participei, declarei, na minha intervenção:

“Eu não dou ao Sr. Dr. Durão Barroso, nem ao Sr. Eng.º Guterres, nem ao Sr. Dr. Carvalhas, nem ao Sr. Dr. Paulo Portas o “direito” de fazerem uma “lista” - ainda por cima uma lista! - em que eu tenho autorização de votar. Esse é um direito que é meu, em democracia. Não existindo, logicamente não temos democracia. Portugal só terá democracia quando tiver exclusivamente círculos uninominais - que é para eu poder escolher a pessoa - e qualquer pessoa puder candidatar-se.

Naturalmente, os partidos políticos são importantes e úteis e eu defini-o há muitos anos, num artigo no “Expresso”, em 1979, cinco anos depois da revolução, ainda era o Dr. Balsemão o Director, em que terminava com esta frase:

“Partidos políticos como congregações de homens com o mesmo credo político, sim. Partidos políticos como órgãos de poder, não. Partidos políticos como órgãos de poder ditatorial, três vezes não!”

Parece-me estranho mas, do seu “não ponho, obviamente, em causa...” depreendo que o Sr. Dr. Rangel dá esse “direito” aos chefes dos partidos!

Isso leva-me à pergunta: então porque é que não dava esse direito ao Salazar? Será que sendo um só senhor a fazer a lista a seu belo prazer é mau, mas se forem quatro senhores a fazerem quatro listas - também a seu belo prazer - já é bom? Não se considera miseravelmente roubado do seu direito de escolher em quem delega os seus poderes - já que lhe dizem que estamos em democracia - quando lhe negam o direito de escolher a pessoa que o vai representar na Assembleia da República e no Parlamento Europeu? Eu considero-me “espoliado”! Tal como me considero espoliado do direito - que certamente existe numa democracia - de me candidatar se esse for o meu desejo!

O curioso é que esses direitos democráticos existem em Portugal, mas apenas na eleição para o Presidente da República que, embora seja o mais alto magistrado da nação, não é quem mais exerce o poder executivo nem legislativo.

Há muito que venho denunciando - com escasso, mas talvez algum êxito - o sistema ditatorial partidocrático que nos impuseram, numa Constituição que não foi referendada, o que em tempos actuais lhe tira imensa validade. (E não foi sujeita a plebiscito porque os que a fizeram bem sabiam que seria imediatamente rejeitada pela grande maioria do povo português!).

Ao contrário do que alguns políticos declaram, que “não há democracia sem partidos”, os partidos são uma conveniência e não uma obrigatoriedade das democracias.

O que temos em Portugal são partidos políticos com tanto poder ditatorial que até só eles podem apresentar candidatos e, ainda por cima, fazem-no na forma de “listas”, pacotes de “pegar ou largar”, sem que o pobre “eleitor” tenha possibilidade de dizer “sim” ao senhor “A” e “não” ao senhor “B”.

Repito: enquanto Portugal não eleger os seus deputados em círculos uninominais e com total liberdade de os cidadãos - e não os partidos - apresentarem candidaturas, não estaremos em democracia.

Naturalmente, acabará, também, esse desgraçado sistema proporcional que alguns furiosamente defendem. E dizem que está consagrado na nossa (infeliz) Constituição “para defesa das minorias”. É claro que os factos mostram que essa desculpa cai pela base, como se pode ver pela ausência de deputados dessas minorias na Assembleia da República e no Parlamento Europeu.

As únicas “minorias” que têm assento na Assembleia da República e no Parlamento Europeu são o PCP (com os Verdes atrelados) e o CDS-PP! Qualquer destes partidos, em eleições livres e uninominais, certamente elegeria alguns deputados.

As minorias, como o MRPP, a UDP, o PSR e outros, não contam! Talvez, até, em eleições livres e uninominais, conseguissem eleger algum deputado.

A razão porque alguns dos nossos políticos defendem com unhas e dentes o sistema proporcional e as famigeradas “listas” é que essa é a única forma de terem “garantida” a sua eleição. Os cabeças de lista e os que se lhes seguem de perto sabem que, assim, serão eleitos. Doutra forma, se tivessem que disputar a eleição, num círculo uninominal, contra um outro candidato, talvez não conseguissem o seu lugarzinho na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu.

*

Mas, mais adiante, no seu artigo, o Dr. Rangel diz que “... por regra, acabada a eleição, o País não se sente representado pela maioria dessas personalidades.” E, mais adiante, escreve:

“Claro que a questão será ultrapassada no dia em que houver a coragem de pôr em vigor uma lei eleitoral que atenue estas “habilidades”, que aproxime, de facto, o eleito dos seus eleitores e que autorize a candidatura de personalidades que, não estando inscritas nos partidos políticos, possam apresentar-se ao julgamento dos eleitores nessa tarefa de representar o País”.

Afinal, o Dr. Rangel - como acredito que acontece com a maioria dos portugueses - deseja o mesmo que eu!

Qual a razão porque não o diz claramente, em vez de “não pôr em causa”? Porque não exige, como eu exijo, a votação em círculos uninominais e a liberdade de candidaturas individuais, com os partidos limitados a apoiarem os candidatos que entenderem? Não será essa a única forma de termos democracia em Portugal?


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