17 de março de 2008

VOTAR EM LIBERDADE

Publicado no “Correio da Manhã” de 8-9-2000:


O artigo de Botelho da Silva (CM de 3-9-2000) levanta parte dum magno problema relativo ao sistema político que nos rege e que, como nalguns outros países, se chama, impropriamente, DEMOCRACIA.

De acordo com o significado da palavra (do grego “demos”, povo e “kratos”, poder), é o sistema político em que o povo é soberano, isto é, é nele que reside o poder. É o sistema totalmente oposto ao que vigorou em muitos países durante muitos séculos, o “absolutismo”, em que um rei ou imperador tinha poderes totais sobre os seus súbditos.

A “democracia” existiu na Grécia no século V AC mas, além de outras limitações, até era compatível com a existência de escravos!

Já no século XX, porque a palavra “democracia” tinha muitos simpatizantes, alguns espertos utilizavam-na no nome de países onde vigoravam ditaduras mais ou menos ferozes. Sabemos o que eram as “Repúblicas Democráticas de…” .

Numa democracia, portanto, o poder reside no povo. Mas, porque não é viável, salvo para pequenos grupos ou para alguns raros problemas de grande importância nacional, a chamada “democracia directa”, em que todos exprimem a sua opinião, o povo escolhe alguns dos seus elementos e neles delega, para um certo período de tempo, o poder de legislar e governar. Para isso usa-se, naturalmente, o voto.

A democracia assenta nalguns pressupostos. Assim, além de a cada cidadão caber um voto, os votos têm todos o mesmo valor. Quando há que decidir entre várias hipóteses ou pessoas, faz-se uma votação e adopta-se ou elege-se a que recebe mais votos.

Nalguns casos – mas nem sempre – se há mais de dois candidatos e nenhum deles tem a chamada “maioria absoluta” – ou seja, pelo menos 50% dos votos mais um – a votação faz-se em duas voltas, sendo a segunda apenas entre os dois mais votados na primeira. É o sistema que vigora em Portugal na eleição para o Presidente da República, mas nem em todos os casos é assim. Se o mesmo sistema vigorasse em Portugal, o Dr. Mário Soares não teria sido eleito Presidente, pois o Prof. Freitas do Amaral teve, na primeira volta, muito mais votos que qualquer dos outros candidatos.

Os partidos políticos começaram, no mundo, por ser uma espécie de clubes onde se juntavam os cidadãos com as mesmas ideias políticas, o que tem toda a lógica. Mas, nalguns casos, começaram a arrogar-se direitos de poder, de tal forma que os cidadãos, nos países onde isso tem acontecido, passaram a ver limitados, em grau maior ou menor, os seus direitos de escolher livremente em quem delegam um poder que, em democracia, lhes pertence totalmente.

O caso extremo – mas que não é o único – encontra-se em Portugal. De acordo com a Constituição de 1976 – que não foi plebiscitada, o que lhe tira muita validade – os círculos eleitorais coincidem com os distritos, o que faz com que haja círculos muito grandes, com muitos deputados (dos distritos com muitos eleitores, como Lisboa, que elege 49 ??? deputados) e círculos pequenos, com poucos eleitores, como Beja e Portalegre, que só elegem três ???? deputados cada um.

Isso é muito “confortável” (embora antidemocrático) porque não só os cabeças de lista mas também um certo número dos candidatos que se lhe seguem, dos grandes partidos, têm à partida assegurada a sua eleição, algo inconcebível em democracia. Dá muito jeito, especialmente aos “crónicos” desses partidos que, assim, não correm o risco de não serem eleitos. A menos que o chefe do partido, que detém o poder ditatorial de decidir quem é ou não é candidato e em que posição na lista , resolva que ele não será candidato ou que ficará em posição presumivelmente “não elegível”. Até já sucedeu o oposto, a eleição dum deputado do PS por Coimbra, que as bases locais do partido não queriam mas que o chefe, ditatorialmente, impôs.

É evidente a aberração do sistema – que considero, como já escrevi, uma verdadeira burla – pois se apregoam os nomes sonantes do topo da lista, quando um voto “neles” só vai influenciar um obscuro nome lá muito para baixo, na lista. E o caricato – e a burla – do sistema é bem evidente nalguns casos, como já sucedeu no Porto, em que a Rosa Mota foi incluída numa lista de candidatos mas, como ela própria afirmou, em lugar não elegível, pois não se sentia com qualidades para exercer o cargo de deputada. O seu nome sonante de grande campeã mundial apenas servia de “chamariz” para alguns ingénuos votarem nessa lista, julgando que estavam a votar na Rosa Mota, assim como se usa um engodo para caçar patos!

Para cúmulo da aberração do sistema, nenhum cidadão se pode candidatar a deputado ou autarca. Esse “privilégio” pertence aos órgãos de poder ditatorial que são os partidos, com absurdos poderes que esta Constituição lhes dá, roubando-os aos cidadãos.

Que fique bem claro que não sou contra a existência de partidos políticos. Sou contra o facto de lhes atribuírem poderes que são pertença dos cidadãos, individualmente. O que penso do assunto defini-o num artigo que publiquei no “Expresso” há mais de vinte anos (“Partidofobia e partidocratite”, em 27/10/79) e que termina assim:

“Partidos políticos como congregações de homens com o mesmo credo político, sim! Partidos como órgãos de poder paralelo, não! E partidos como órgãos de poder ditatorial, três vezes não!

É completamente irrelevante que seja livre o acto de votar (meter o papelinho na urna) quando antes se limitou drástica e ditatorialmente em quem os cidadãos podem votar.

Só teremos DEMOCRACIA – isto é, um sistema em que os cidadãos escolhem em total liberdade quem os governa – quando tivermos apenas círculos uninominais, constituídos por um conjunto de freguesias adjacentes (ou partes de freguesias, se algumas tiverem mais eleitores do que os de cada círculo) que, para os números actuais devem ser de cerca de 40.000 eleitores, e total liberdade de candidatura dos cidadãos.

Aos partidos políticos deveria ser vedada a apresentação de candidatos, que serão apresentados por um certo número de eleitores. Os partidos limitar-se-ão a apoiar os candidatos que entenderem,

Afinal, é o sistema que vigora em Portugal… mas apenas para a eleição do Presidente da República!

Quando o Dr. Carvalhas, em princípios de Setembro, declarou que irão anunciar “o candidato do partido” para Presidente da República estava a confessar que não conhece a Constituição portuguesa. Nenhum partido pode “apresentar candidato”. Apenas pode dizer o nome que o seu partido apoiará se um número “mínimo de 7.500 e um máximo de 15.000 cidadãos eleitores” o propuser (Artigo 124º da Constituição). Convém não esquecer as regras…

Com círculos uninominais e liberdade de os cidadãos – e só os cidadãos - se candidatarem, não há “eleitos à partida”, nem os tais “lugares elegíveis”, algo que acontece nas ditaduras. E os cidadãos ficariam a saber quem estava na Assembleia da República por mandato seu, quer tenham ou não votado nele/nela.

O equilíbrio de forças na Assembleia da República resultaria do agrupamento dos deputados pelos partidos que os apoiassem (fossem filiados ou não) e mesmo de grupos de autênticos independentes.

Não deveria haver essa figura caricata (para quem tinha sido eleito) de “suspensão do mandato”, salvo para exercício de cargo no governo (ministro, secretário ou subsecretário de Estado).

No caso dum deputado abandonar o lugar – o que deveria ser caso raro e não a anedótica dança de cadeiras” actual – seria feita nova eleição no círculo respectivo. No caso de abandono do lugar para ocupar cargo no governo, o novo eleito, embora com todas as prerrogativas, seria considerado interino, até ao regresso do titular, se ele o desejasse.

Quando isto se fizer, teremos então DEMOCRACIA e não a actual partidocracia ou, como costumo dizer, na sequência dos outros “ismos”, o PARTIDISMO, que tem todas as características duma ditadura.

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* Investigador Coordenador e Professor Catedrático, jubilado

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